Reportagens multimídia: técnica do "snowfall"

O jornalismo contemporâneo trouxe a necessidade de atualizar os formatos e inovar nos procedimentos já existentes na construção de reportagens ● Por Cecilia Damasceno e Thiago Silva



      Já não é novidade que o jornalismo na Web 3.0 precisa se reinventar quase diariamente. Com a necessidade da atualização instantânea de informações e de recursos multimídia para prender a atenção do usuário, a produção de notícias deixou de ser simplesmente o processo de transformar o material apurado em texto pronto para ser apreciado para o leitor.

      Agora, na era da convergência, o jornalista precisa ser muito mais dinâmico e se transportar para o papel de profissional multitarefa: em uma redação de web, elaboração de pauta, apuração e confecção do texto andam juntos, e não para por aí. Com o banco de informações disponíveis online, é via de regra qualquer matéria criada para sites possuir hiperlinks, redirecionando para arquivos do próprio site ou de sites externos, para vídeos, podcasts, galerias de imagens. Em suma, qualquer recurso que possa aprofundar o conhecimento do leitor sobre o assunto e transformar a leitura numa experiência imersiva.

      Coordenador de conteúdo e editor-chefe da TV Estadão, Felipe Araújo comenta como o processo de produção funciona hoje nas redações. “Antes da reunião geral de segunda, fazemos uma reunião da TV Estadão, nesse momento, começamos a fazer pautas nossas. A maioria da equipe é formada por jornalistas, que estão sempre bem antenados. Eles ficam até um pouco frustrados por não poderem escrever. E, com isso, acabam surgindo pautas muito boas para o impresso, que eu até repasso para redação. Assim, produzimos foto, impresso e vídeo, e o material fica todo sincronizado”, explica.

      A discussão em torno do “meio ideal” de se fazer jornalismo para web cresceu nos últimos anos, e não foram poucas as proposições que surgiram para tentar responder a essa questão. Quando um assunto ganha destaque e merece aprofundamento, a chamada técnica do snow fall é correntemente citada como o caminho mais multimídia.

      Elaborada pelo The New York Times em 2012, a reportagem “Snow Fall: the avalanche at Tunnel Creek” relata o desenrolar de uma avalanche de neve, em fevereiro do mesmo ano, que matou três dos 16 atletas profissionais que praticavam snowboard nas montanhas Cascade, localizadas no estado de Washington. Unindo áudio, vídeo, imagem, animação e texto, o jornal decidiu reconstituir a nevasca, utilizando-se dos recursos multimídia para criar uma atmosfera capaz de inserir o internauta dentro do acontecimento.

      A versão final da reportagem foi disponibilizada online em dezembro de 2012 e não demorou a ser reconhecida mundialmente. No ano seguinte, ganhou o prêmio Pulitzer, passando a ser apontada como modelo ideal para a construção dessa modalidade: a reportagem multimídia. A inovação do The Times destacou-se não só pelo formato, como também pela apuração detalhada, pela contextualização da tragédia e pelas possibilidades de interação oferecidas aos usuários.

      Verdade seja dita, no entanto, as reportagens no estilo snow fall são caras, pois envolvem profissionais de diversas áreas, e demandam um tempo que, na correria cotidiana das redações, raramente pode ser empregado na produção de uma só matéria. Para o jornalismo factual, do dia-a-dia, ainda se mostra mais fácil a transposição de conteúdos já existentes (como vídeos e fotos, muitas vezes feitos para as versões impressa ou televisiva do veículo) para enriquecimento o texto. 

      A reportagem do The Times levou cerca de seis meses para ser completamente estruturada e ficar pronta para ir para o site. Além do repórter idealizador da inovação, John Branch (foto à direita), 11 especialistas em gráficos e design, um fotografo, três editores de vídeo e uma colaboradora de pesquisa foram indispensáveis para a produção, encarecendo o processo pela variedade de especializações. Mesmo a editora-chefe do jornal, Jill Abramson, admitiu que o veículo não está pronto para produzir reportagens multimídia em série – apesar de frisar que esta é a direção.

      “As redações, se for comparar com alguns anos atrás, estão cada vez mais enxugando. Não só enxugando, mas também triplicando o nosso trabalho. Antes, eu pensava só em foto ou só em texto. Hoje, tenho que pensar fotos, texto e vídeo. Vou fazer uma viagem agora e estou tentando levar outro jornalista junto comigo. Vamos produzir uma matéria especial, que é multimídia, sobre O Caminho de Santiago (vídeo abaixo). É um diário de bordo, com histórias de peregrinos. Vamos mandar diariamente pequenos textos para a home do Estadão. Vamos usar tudo, texto, fotos e vídeo, um chamando o outro. No final, faremos um mini-doc”, conta Felipe Araújo.

Exemplo de vídeo produzido pela TV Estadão, especificamente sobre o caminho de Santiago da Compostela.

Polêmicas


      Há controvérsias entre os pesquisadores do assunto sobre a eficiência da técnica de narrativa snow fall. Sem colocar em discussão o aspecto estético, aclamado de forma unânime, há quem aponte que os recursos tomam o lugar da informação em reportagens desse tipo. Em outras palavras, o usuário se prende pelo encanto da interatividade com os conteúdos, mas deixa de prestar atenção total ao fato narrado, que é, afinal de contas, o objetivo principal a ser alcançado com uma matéria.

      Por outro lado, a lógica atual da internet funciona, em grande parte, de acordo com a viralização dos conteúdos. Se determinada publicação agrada ao leitor, ele a compartilha com seu círculo de amizades, tornando-a disponível para um número maior de internautas, que por sua vez têm a oportunidade de tornar a compartilhar ou não. No caso de reportagens multimídia seguindo a técnica de snow fall, o fluxo de compartilhamento pode servir bem à disseminação do conteúdo, uma vez que o usuário é conquistado pela inovação no formato.

      A interatividade proporcionada pelos novos formatos jornalísticos virtuais, em especial os que englobam os recursos multimídia, comprovadamente desperta o interesse do internauta. A possibilidade de não somente ler uma matéria, mas também interagir com os conteúdos disponíveis e sentir-se inserido no relato é uma nova face do jornalismo trazida pela web, que aos poucos já se torna algo naturalizado para os internautas dos dias de hoje. Dificilmente se encontra uma matéria em um portal jornalístico que não contenha um vídeo relacionado, por exemplo, porque já causa estranhamento ao usuário se deparar somente com texto ao abrir um link de uma notícia que o interessou. 

      A integração de tipos diferentes de mídia construindo um modelo totalmente novo em relação aos já disponibilizados pelos formatos tradicionais enriqueceu o estilo de reportagem para web e consolidou-se como se principal diferencial em relação aos estilos de TV, rádio e impresso. Apesar de ainda bastante distante da técnica utilizada em reportagens como a snow fall, a multimidialidade no jornalismo virtual contemporâneo já se tornou um artifício básico na elaboração de um portal de notícias que se pretenda a ter grande número de visualizações.
Luís Fernando Bovo afirma que a leitura não depende
do tamanho do texto, porém de seu conteúdo.

      Luís Fernando Bovo, editor-executivo de conteúdos digitais do Estadão (foto à direita), acredita que o leitor se interessa pela matéria quando encontra conteúdo de qualidade e com bom desenvolvimento: “Publicamos matérias longas, e muitos criticam dizendo que, hoje, ninguém lê texto longo. Mentira! A coluna da Eliane Brum é uma das mais lidas. O público lê os textos dela inteirinhos, porque são legais. Essa é a questão. Se o seu conteúdo for legal, as pessoas vão ler a matéria completa. Pode ter certeza que, se você conseguir fazer uma reportagem interessante e atrativa, ela não vai ser só lida, como também compartilhada”, avalia.

      O caminho coerente a se seguir é reafirmar de forma definitiva o uso crescente dos recursos multimídia nas produções diárias dos portais de notícia. A elaboração de matérias mais criativas e mais integradas à narrativa verticalizada dos multiformatos, mais que uma adaptação do jornalismo às inovações, apresenta-se como uma forma de se opor à banalização da informação pela informação, à atualização instantânea como carro-chefe da lógica do fazer jornalístico atual.


“Criticam dizendo que, hoje, ninguém lê texto longo. Mentira!”
Luís Fernando Bovo, editor-executivo de conteúdos digitais do Estadão.


O destaque brasileiro


      Exemplo brasileiro na produção de reportagens em snow fall, o portal de notícias NE10 é reconhecido nacionalmente pela inovação na produção de jornalismo digital e conteúdo imersivo. Consolidando a produção online de notícias do Jornal do Commercio de Pernambuco, o site já chega à internet, em 1997, pensando nas ferramentas necessárias para a navegação do usuário – imagens, links e layout próprio – o que não era comum na época.  

      Em razão do constante processo de evolução, o portal reúne prêmios locais, nacionais e internacionais, sendo muitas dessas premiações destinadas as reportagens especiais, que são destaque pelo enfoque e aprofundamento do tema, além do uso preciso dos recursos multimídias.

      A série de reportagens “Foi mais que 7x1” é um dos destaques mais recentes, ficando em segundo lugar, na categoria Online, da 32ª edição do prêmio nacional de Direitos Humanos de Jornalismo. O especial mostra as feridas sociais, que as obras para a Copa, deixaram um ano depois.

      Conhecido por reafirmar a cultura nordestina, o NE10 produz também reportagens em snow fall homenageando ícones da história pernambucana. Entre elas estão: “Imortal – Ariano Suassuna” e “Abelardo – A Hora da Despedida”, matérias especiais que recontam a vida desses artistas fundamentais para a cultura brasileira.


Medium: uma plataforma amigável para publicações


      Há na internet movimentos para democratizar o acesso a informação e a produção de conteúdo. Com esse intuito, em agosto de 2012, foi lançada o Medium, uma união de rede social e publicador de conteúdo.  

      O Medium é uma plataforma gratuita que possibilita ao usuário a produção de artigos seguindo as características que uma reportagem em snow fall. Essa ideia rompe com a convenção de que apenas veículos de impressa, que dispõem de dinheiro e mão de obra, podem produzir matérias especiais multimídias.

      Por não possui todas as ferramentas imersivas das grandes reportagens em snow fall, a rede social traz uma experiência simples e inovadora aos usuários. Para os criadores do Medium, o importante é o que o internauta tem a dizer. "O Medium é um lugar para as pessoas dividirem ideias e histórias importantes", afirmou Gabe Kleinman, gerente de recursos humanos da plataforma, à Exame.com.

      Durante 2015, o Medium foi destaque como fonte alternativa de informações, por exemplo, a cobertura feita pelo coletivo Jornalismo Livre sobre o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana, Minas Gerais, dando voz para os moradores contarem suas histórias.


Alguns exemplos tupiniquins



Especial da TV Folha sobre a construção da usina de Belo Monte.

      O jornalismo brasileiro não deixa a desejar quanto a produção de reportagens em snow fall, dedicando o uso dessa técnica para matérias mais complexas e para relembrar fatos históricos. O empenho dos jornalistas, conjuntamente com fotógrafos, programadores e designer, gerou as reportagens a seguir, que têm reconhecimento nacional e internacional.



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